FALAR
OU NÃO FALAR...
(Carta encontrada num velho baú, escrita por um cientista já falecido)
"As semelhanças entre humanos e outros animais têm sido
objeto de minhas observações e estudos. Escrevi teses e artigos sobre minhas
pesquisas, que nenhuma revista científica quis publicar, por pura ignorância
(delas)”. Abro o jornal e leio: “Gene
pode explicar porque homens falam e macacos não”. Não pude deixar de dar
o meu sorriso irônico. Eu falei, falei, mas não me deram crédito - só porque
nasci e vivo no Brasil, um país do terceiro mundo. Eu sei: ‘Macaco não fala
porque é mais inteligente que o homem’. A linguagem é a maior fonte de
desentendimentos.
A manchete refere-se ao fato de
pesquisadores europeus terem descoberto que um único gene é responsável pela
linguagem. Com um sabor de vitória na mente, senti que meus estudos estavam bem
mais adiantados que os deles. Cheguei a conclusões semelhantes faz muito tempo.
Orgulhoso por ser o dono da descoberta (só eu sei disso, até agora), imaginei o
próximo passo desses insignificantes colegas.
Num futuro ainda distante, franceses,
americanos e ingleses estarão discutindo quem foi o pioneiro da grande
descoberta. Isolado, o tal gene da fala será em seguida transplantado para
diversos animais. Eles começarão a comunicar-se de um jeito confuso - só até
organizarem sua gramática. É aí que mora o perigo. Antecipando-me aos colegas,
mandei instalar filmadoras com equipamento de gravação com tradução instantânea
(uma invenção minha) em várias árvores, para entender os bichos que tanto
lutamos para preservar. Fiquei estarrecido com o que ouvi.
Uma loba e seu filhote:
-
Vamos
filho, diga alguma coisa...
-
Auuuu...
-
Não,
sua besta! Esqueceu que podemos falar? Vamos... Diga mamã.
-
Ma-ma-mã!
Auuuuuuuuuu....
-
Precisava
uivar assim? Vai ficar de castigo por isso.
Nota: Observe que, de simples orientadora, mamãe loba transforma-se
numa... mãe convencional. E o castigo, até então entregue à mãe natureza,
desconhecido na vida selvagem, passaria a atormentar todos os filhotes.
Uma família de leões:
- Como
é que é, Sofia? Estou com fome! Você não vai caçar? - reclamou o monarca.
-
Bem que você podia me dar uma ajuda, em vez
de ficar aí dormindo! - disse a leoa,
num tom queixoso. - Afinal, estou grávida, lembra?!
- E daí? - gritou o macho zangado. - Gravidez
não é doença! - e acrescentou: Nem desculpa para não trabalhar! Vai logo, anda!
Nota: O diálogo mostra que, se eles
falassem, não iria demorar pro divórcio chegar ao reino animal. E o que é pior:
com ele, os advogados.
Um casal de cervos:
- Raquel, não devias paquerar na frente
dos nossos amigos! Já está dando na vista! - falou o marido chifrudo.
- Olha só quem fala! Pensa que eu não
notei que estavas olhando muito para aquele tigre que apareceu por aqui ontem?
Parecias estar querendo ser comido!
Nota: Infidelidade e bichossexualismo
passariam a ser motivos de discórdia entre os quadrúpedes. Já pensou numa
passeata de "orgulho de cervos"?
Sapo e seu filho:
- Luizinho - disse papai sapo -, vofê deve
aprendê a falá. Prefiro continuá como
sua vó, uma analfabeta que sempre me dife que o importante é sê honesto. Mas
vofê, que já ganhô cinco milhão de mosca (o dinheiro dos sapos), tem que
aprendê. Quem fabe vofê vira rei dos sapos? Mas num dexa crecê a barba, viu?
Nota: Nasceria a política no reino
animal.
Antevendo a desgraça que se abateria sobre a fauna caso os
bichos verbalizassem seus pensamentos, decidi queimar todas as minhas anotações
sobre o gene da fala. Destruí meu tradutor instantâneo. Fiquei preocupado com a
possibilidade de ele cair nas mãos de jumentos e ratos. Sei o que você - que encontrou esta
carta - está pensando. Não, eu não estou querendo impedir o avanço da ciência.
Desejo apenas proteger os bichos, já que os humanos estão definitivamente perdidos.
“Os homens
usam a linguagem para estabelecer regras e normas que nunca são cumpridas,
enquanto que os animais obedecem cegamente regras não escritas”.
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